20.7.10

Crítica/R.E.M - Automatic for the People

Por Fabricio Boppré

R.E.M

Disco: Automatic for the People (1992)

 

Uma outra definição para a palavra “inspiração” poderia ser simplesmente Automatic for the People. Este álbum do R.E.M., lançado em 1992, é desde sempre meu parâmetro para essa palavrinha de definição tão difícil. Inspiração é somente o que eu ouço ao longo dos pouco menos de 50 minutos mágicos deste disco. Inspirador é a melhor forma de classificar o ato de ouvir coisas sublimes como Try Not to Breathe, Sweetness Follows e Find The River. Inspirados é tudo que esses quatro caras de Athens, àquela altura já donos de um sólida e respeitável carreira, estavam quando começaram a dar vida à esta obra-prima.

Automatic for the People possui brilho próprio dentro da rica discografia do grupo. Uma obra mais carregada, amarga, emocional, com a banda esmerando-se nos arranjos sem precisar recorrer a uma grande variedade de instrumentos para isso, e que, com um êxito sem paralelo, ressaltam de forma eloquente a beleza de cada canção. As melodias estão também um patamar acima: apesar desta ser uma da principais virtudes do R.E.M. desde seu registro de estréia, gravado 10 anos antes, acredito que poucas vezes um grupo chegou tão perto da perfeição neste aspecto como chegou o R.E.M. neste álbum.

A abertura com Drive é magnífica — e apesar desse adjetivo superlativo, não é nem de longe o que há de melhor no disco. O violão caprichosamente dedilhado e a messiânica voz de Michael Stipe são o cartão de visita que entrega ao ouvinte mais ou menos o que ele vai ouvir ao longo do álbum: uma mistura de sons acústicos, despojamento geral convivendo em harmonia com um ou outro detalhe mais elaborado e grande habilidade para fazer muito com pouco. A canção ganha força com a entrada da guitarra (outrora força motriz da música do R.E.M., aqui é coadjuvante quase sempre) e trechos orquestrados, cortesia de Mr. John Paul Jones. Instaura-se desde então uma certa melancolia, sóbria e resignada, que vai sofrer um ou outro abalo, mas que sempre volta para ser a responsável pelos melhores momentos de Automatic for the People.

Try Not To Breathe é o primeiro verdadeiro primor do álbum. Através de um minimalismo sossegado e despretencioso, a banda ilumina a alma do ouvinte recém saído da nublada Drive. A atuação madura e plácida na medida certa de Michael Stipe, apoiado pelos sempre perfeitos backing vocals de Mike Mills, é o grande destaque desta comovente canção cujo simples mote “these are the eyes that I want you to remember” seria suficiente para lhe conferir lugar garantido na coletânea de mais belas canções já gravadas.

The Sidewinder Sleeps Tonite faz mais a linha do R.E.M. tradicional mais antigo e vem a ser um dos poucos momentos de Automatic for the People em que você imagina uma banda alegre tocando no palco para uma platéia em movimento. Uma canção entusiasmante e levemente viciante, daquelas que te fazem cantarolar baixinho incontáveis vezes. O apelo de The Sidewinder Sleeps Tonite tem seu equivalente tristonho na faixa seguinte, Everybody Hurts, uma canção emblemática; sonoramente, aproxima-se de uma canção de ninar, quase uma prece dirigida a quem acredita não possuir mais motivos para continuar vivendo. Se a lenda de que Kurt Cobain estava ouvindo Automatic for the People no momento em que preparava-se para atirar contra sua própria cabeça for verdadeira, essa canção deve ter sido um dos motivos para sua escolha final. Uma pena não ter funcionado. Apesar dos arranjos orquestrados muito bem encaixados e a nova atuação de gala de Stipe, me parece uma canção menor de Automatic for the People — talvez por isso tenha virado hit.

New Orleans Instrumental No.1 é uma simpática canção instrumental, sem estilo muito bem definido, que sempre me passou a sensação de um passeio de carro por uma cidade, altas horas da noite, naquele horário em que as coisas estão silenciosas, onde poucas luzes perduram — ainda que, pelo que me conste, New Orleans seja uma cidade conhecida por sua vida noturna, ou pelo menos assim era antes da tragédia natural que abateu-se sobre ela em 2005. Após este entre-atos, novo momento de perfeição arrebatadora: Sweetness Follows abre com um violoncelo arranhado, doído, lamuriante. O vocal de Stipe entra redentor junto a teclados mágicos que o ajudam a galgar o som atormentado logo embaixo. “It’s these little things, they can pull you under/Live your life filled with joy and wonder/I always knew this altogether thunder/was lost in our little lives”. Microfonias eletrificam a canção da metade para frente, tornando o conjunto ainda mais emocionante. Uma canção fantástica, que te deixa com a impressão de ter sido composta após o autor ter sido atingido por um raio de inspiração divina.

Monty Got A Raw Deal mantém o nível alto, com a banda fazendo ótimo uso de um acordeon e tirando do armário o ukelele usado em Losing My Religion. A música tem estética Me In Honey: base instrumental simplificada, sem grandes variações, martelando na cabeça do ouvinte enquanto Michael Stipe canta sobre ela. Tudo impregnado de uma beleza singela e encantadora. Já Ignoreland é marcada pela verborragia de Michael Stipe, eternizada em It’s the End of the World. Aqui o estilo é um pouco diferente: enquanto na famosa canção quase sempre utilizada para fechar os shows da banda Michael Stipe atira a letra em uma velocidade praticamente constante do início ao fim, em Ignoreland existe um crescendo que vai do verso inicial até o refrão, que então marca novo início da brincadeira. Uma faixa bacana, mais elétrica e agitada, mas que acima de tudo serve para reforçar que o que há de melhor em Automatic for the People não é sua empolgação rock, mesmo que esta venha embalando uma canção política que fala do espírito belicoso estadounidense.

Star Me Kitten é uma baladinha interessante, com seu clima de música de outra época e vocais sussurrados. Consolida a atuação de Stipe e a criatividade da banda como principias trunfos do álbum. Mesmo assim, na minha relação com Automatic for the People, sempre funcionou mais como um segundo entre-ato, que divide o disco em três. E é nesta terceira e última parte que temos Man on the Moon, uma das faixas mais festejadas de Automatic for the People. Trata-se de uma homenagem ao comediante americano Andy Kaufman, e que acabaria sendo utilizada na trilha sonora do filme homônimo de Milos Forman, onde Jim Carrey interpreta Andy. Canção de estrutura mais clássica e refrão inesquecível, apesar de não rivalizar com o brilhantismo genuíno de faixas como Try Not To Breathe e Sweetness Follows, acaba sendo uma das melhores do disco em função de seu perfeito equilíbrio entre melodia pop redonda e tributo a um artista morto precocemente.

Após Man on the Moon chegamos ao primoroso final do disco, cujas duas faixas são daquelas onde tentativas de descrição soam inócuas. Há algo nestas duas canções que vai além das palavras. Nightswimming tem uma linha de piano que exala contemplação e beleza, uma canção que extrapola qualquer rótulo — pelo menos em minha percepção, não deve haver ser humano que ouvindo essa música não se emocione. Sua melodia me parece capaz de levar qualquer um, por mais depressiva e desfavorável que seja sua situação, para um mundo paralelo de conforto e paz. Ao R.E.M., a humanidade deve um agradecimento. E Find The River, bem, se todas as impressões escritas aqui são pessoais, mas ainda assim consegui de uma forma ou outra registrar superficialmente as sensações que o álbum me desperta, deste ponto não tenho como passar. A transcendente melodia, de serenidade apaziguadora e algo rural (sentimento este agravado pela letra), e o irretocável arranjo acústico desadornado de qualquer ruído que revele alguma relação com aqueles barulhentos anos 90, além dos backing vocals (sempre a cereja do bolo do R.E.M.) distantes e imaculados, fazem de Find The River a minha música e ponto final.

Com atuação magistral de todos os membros da banda, o R.E.M. construiu um disco fabuloso em seu conteúdo e execução. Uma obra-prima que conta com certo capricho em sua concepção (a límpida produção, a orquestra conduzida por John Paul Jones), mas cujos reais destaques são a inspiração pura e o talento nato manifestados em canções de arranjos econômicos, básicos, que visam apenas entregar ao ouvinte aquilo que realmente importa. Tem-se assim um disco que pode ser usado como argumento inquestionável contra qualquer um que venha a defender a exuberância e o exagero como virtudes verdadeiras. Nada contra — não existe envelope fechado com o nome do vencedor na interminável discussão do que é bom ou ruim na música — mas, como crente do dito “simplicity in character, in manners, in style; in all things the supreme excellence is simplicity” (H. W. Longfellow), não posso deixar de pensar que neste disco reside algo de especial e único. Particularmente, Automatic for the People é acima de tudo um recurso pessoal para qualquer estado de espírito que possa ser elevado. Se você não possui algo assim em sua vida, lamento muito.

Capa

Texto encontrado em> dyingdays

 

Link> Download

0 comentários: