30.12.09

Crítica | Klaus Schulze

Klaus Schulze 

Crítica | Klaus Schulze

Em 20 anos de carreira, Klaus Schulze produziu um número invejável de obras-primas. «Wahnfried 1883», «Mindphaser», «Stardancer», «Nowhere-Now Here», «Velvet Voyage», «Crystal Lake», «Synthasy», «Babel», «Picasso Geht Spazieren» e «Ein Schönes Autodafé» constituem um conjunto de performances geniais que só o mais talentoso artista pode conceber. O que caracteriza todas estas peças é o facto de serem incomparáveis, ímpares, one of a kind. Mas essa é a verdadeira marca da obra-prima: nada se lhe compara, são manifestações únicas e irrepetíveis de um espírito criativo.

Depois de um relativa crise criativa nos anos 80, Schulze regressa em força nos anos 90. Os primeiros sinais já se faziam sentir no CD «Beyond Recall», aprofundaram-se no «Royal Festival Hall», e apuraram-se até à perfeição na «Silver Edition». Numa reviravolta inesperada, Schulze começou em 1993 a saga «The Dark Side of the Moog» com Pete Namlook (e Bill Laswell, em alguns casos) — e os resultados constituem o que de melhor Schulze tem feito nos últimos tempos. Está agora demonstrada a proposição que Klaus Schulze faz hoje a música que os visionários tentarão imitar no futuro. E o espantoso é que ele o faz exemplificando duas propriedades aparentemente incompossíveis: sem se repetir e sem perder o seu estilo inimitável.

Os primeiros passos

Irrlicht, de Klaus Schulze

Klaus Schulze nasceu em Berlim, em 1947. Durante os anos 60, foi baterista em diversas bandas de beat em Düsseldorf e Berlim. Em 1969 foi convidado por Edgar Froese, líder dos Tangerine Dream, a integrar aquela banda de música electrónica, com a qual editou o álbum «Electronic Meditation.» A sua permanência nos Tangerine Dream durou um único ano. Em 1970 fundou a banda Ash Ra Tempel, em conjunto com o guitarrista e teclista Manuel Göttsching. Nesse mesmo ano surge o primeiro trabalho da banda, intitulado precisamente Ash Ra Temple, na sequência do qual se realizaram vários concertos. A sua colaboração com Manuel Göttsching irá durar cerca de três anos. Em 1971 já o músico de Berlim se encontrava a trabalhar num projecto a solo, em resultado do qual veio a público em 1972 o inesquecível «Irrlicht» («Fogo Fátuo», em português). Irrlicht é um oásis avant-garde surpreendentemente bom. Nele encontra-se já o som típico do compositor e algumas outras características, nomeadamente o facto de os temas terem meia hora de duração. Também a colaboração com uma orquestra, recurso repetido noutros discos, é já uma marca da sua atracção pela tradição clássica. Os primeiros concertos a solo sucedem-se em 1973. Neste mesmo ano surge o duplo LP «Cyborg» e o seu segundo vinil como membro dos Ash Ra Temple: «Join Inn».

1974 é o ano que viu o nosso músico alcançar projecção internacional: na sequência do seu terceiro LP a solo («Picture Music»), surgem os primeiros concertos do compositor e instrumentista na Bélgica, Holanda e França. O seu quarto solo, «Blackdance», foi editado em todo o mundo pela Virgin Records: ironicamente, é bastante diferente dos anteriores, muito menos electrónico, e, de uma maneira geral, bastante fraco. Talvez por ser um trabalho muito mais acessível, a sua fama espalhou-se um pouco por todo o mundo, e em 1975 surge a primeira digressão em França.

Os anos de ouro

Timewind, de Klaus Schulze

1975, aliás, ficará como um marco na música electrónica meditativa, pois é nesse ano que surge o LP «Timewind», no qual se pode ouvir um dos seus melhores temas de sempre: «Wahnfried 1883». Praticamente sem ritmos nem melodias, o que dificulta a apreciação estética, é uma obra ímpar, com a qual nada se podia comparar no panorama da música não erudita da altura. Chega finalmente a adquirir notoriedade internacional: a primeira digressão europeia acontece em 1976. Neste mesmo ano surgem dois novos dados para a história da música electrónica: «Moondawn» e «Body Love», este último uma banda sonora. Nestes dois casos encontramos ritmos e melodias, sendo por isso bastante mais acessíveis do que o intemporal Timewind. O LP Body Love chega mesmo a estar em segundo lugar na tabela de importações da revista americana Billboard.

Em 1977 surge outro padrão na música electrónica: «Mirage». Dois temas excelentes, apesar do segundo ser mais acessível do que o primeiro, que no entanto é sem dúvida o melhor trabalho do género do compositor. O nono LP a solo surgirá ainda em 1977: «Body Love Vol. 2». O tema que se destaca deste álbum caracteriza-se por uma maior acessibilidade: «Nowhere-Now Here» é uma peça dominada pela melodia e pelo ritmo, onde no entanto os elementos abstractos têm também lugar. Uma obra ímpar. É sem dúvida a sua peça mais emocionante.

No ano seguinte surge o duplo LP «X», seguindo-se «Dune», o décimo primeiro da sua carreira a solo. Enquanto X é essencialmente melódico, o tema homónimo Dune é uma extraordinária composição avant-garde. Em X os sons de orquestra são uma parte bastante importante de muitos dos seus temas. Em Dune, são os sons do violoncelo.

A travessia do deserto

Babel, de Klaus Schulze

Em 1979 surge o primeiro vinil de Richard Wanhfried. Até 1986 irão surgir 4 LP deste projecto, que são afinal outros tantos trabalhos de Klaus Schulze, com a participação de diferentes convidados. Em 1980 é editado o duplo «...Live...», onde se registam 4 temas de concertos ao vivo realizados em 1976 e 1979. O seu décimo terceiro solo surge neste mesmo ano, com o nome Dig It. Pela primeira vez são usados exclusivamente instrumentos e técnicas de gravação digitais. É um álbum desequilibrado, mas que tem uma das suas melhores composições de sempre: «Synthasy». Os anos 80 parecem não ser os melhores. Depois de Dig It, encontramos um deserto criativo, uma incapacidade total para sair do lodaçal da repetição fácil. De 1981 a 1985 surgem os LP «Trancefer», «Audentity», «Angst» e «Inter*Face», para além de «Dziekuje Poland», que regista o seu concerto ao vivo na Polónia. Em 1986 surge «Dreams», onde a participação de Andreas Grosser faz de «Five to Four» uma composição excelente e uma antecipação do oásis dos anos 80: «Babel», concebido com Andreas Grosser, é uma peça de uma hora de duração ininterrupta, que por isso só em CD pode ser devidamente apreciada. É uma peça rítmica, melódica e repetitiva que descreve de forma inteligente a construção da mítica torre de Babel.

«En=Trance» é a sua 21 aventura. Tal como em «Miditerranean Pads», de 1990, estamos perante um álbum pobre, que revela uma desconfortável falta de ideias. Apesar de existirem alguns bons momentos, falta a pujança criativa de que o compositor deu provas em diversos momentos, como em Mirage, Body Love Vol. 2 ou Timewind. A saída deste vazio inexplicável começa já, no entanto, a fazer-se sentir no CD duplo «The Dresden Performance», assim como na composição «Face of Mae West» (que integra a compilação «Dali: The Endless Enigma»), ambos de 1990. Em 1991 surge «Beyond Recall», onde se acentuam alguns dos traços que irão ditar a nova música de Klaus Schulze para os anos 90. «Royal Festival Hall» e «The Dome Event», ambos com registos ao vivo e temas de estúdio, acentuam ainda mais a direcção para onde se encaminha a sua música.

O regresso do filho pródigo

Silver Edition, de Klaus Schulze

Quando em 1993 surgiu a «Silver Edition», é toda uma nova concepção de música electrónica que está em causa. Ao fim de 20 anos de carreira, o músico de Berlim volta a espantar o mundo da música electrónica não erudita. A Silver Edition é um monumento musical, donde se destaca a peça «Picasso Geht Spazieren», sem dúvida tão revolucionária para os anos 90 como Timewind o foi para os 70. Esta caixa com 10 CD é uma edição limitada de 2000 cópias, numeradas e assinadas pelo autor, que rapidamente esgotou. Acrescente-se que esta caixa não foi vendida através dos circuitos comerciais normais, mas apenas directamente por Klaus D. Mueller, o manager do músico, e de algumas empresas especializadas de encomendas postais.

Ao contrário do que é habitual nestas caixas com múltiplos CD, não se trata de uma compilação de temas já editados. Todos os temas presentes nesta caixa comemorativa dos 20 anos de carreira são inéditos, no sentido em que não estão disponíveis em qualquer suporte áudio. Mas mais do que isso: das 12 horas e meia de música, 10 horas são peças compostas e gravadas entre 1992 e 1993. Só 2 horas e meia são concertos ao vivo da década de 70, que até agora tinham permanecido inéditos.

Além de Picasso Geht Spazieren (2 horas e meia de duração), são ainda imprescindíveis as composições «Narren des Schicksals» (71 minutos), «Ein Schönes Autodafé» (21 minutos) e «Machine de Plaisir» (73 minutos), para além dos concertos da década de 70, que são todos deliciosos.

Depois da Silver Edition, surgiu uma compilação da Virgin francesa («The Essential 72-93», CD duplo), a banda sonora de um filme francês de sucesso («Le Moulin de Daudet»), mais um Wahnfried («Trancelation»), que desta vez se aventura no domínio da techno-trance, uma ópera («Totentag», CD duplo) e o «Klaus Schulze Goes Classic», em que se pode ouvir interpretações electrónicas fiéis de Smetana, Schubert, Weber, Brahms, Grieg e «Beethoven. De tudo isto é de destacar a ópera «Totentag», onde se usam cantores de ópera em tempo real, em conjunto com a parafernália habitual de dispositivos electrónicos. Mais um marco na música electrónica deste final de século, a justificar plenamente as palavras de Ryuichi Sakamoto: «I listened to Tangerine Dream, but my favorite was Klaus Schulze: better music!» (Wire, Out. 94)

E agora?

Historic Edition, de Klaus Schulze

Depois de Totentag, Klaus Schulze editou «Das Wagner Desaster» (1994), que regista os seus concertos de Paris e Roma em Maio desse ano. À excepção de algumas passagens, o CD não é recomendável. Mas em 1995 surge outra edição limitada, à semelhança da Silver Edition: agora é a «Historic Edition» e apresenta, como o seu nome indica, materiais antigos de Klaus Schulze que nunca tinham sido publicados, incluindo temas de estúdio e temas registados ao vivo. A caixa é imprescindível: tem muitos, muitos momentos inesquecíveis.

«In Blue» surge em 1995 e marca o regresso da colaboração de Klaus Schulze com Göttsching. Os primeiros 15 minutos deste CD duplo fazem parte do melhor de sempre de Schulze: um ambiente planante e lírico, mas ligeiramente ameaçador. Infelizmente, o restante CD deixa muito a desejar. No ano seguinte é editado o duplo CD «Are You Sequenced?», na qual vários autores reinterpretam, no segundo CD a música que Schulze apresenta no primeiro. É uma experiência interessante, mas o melhor do CD acaba por ser as reinterpretações de pessoas como Pete Namlook.

1997 é o ano em que se comemora 25 anos de carreira e o ano do 50.o aniversário de Klaus Schulze. Para marcar a ocasião, é editada monumental «Jubilee Edition», uma caixa com 25 CD, todos inéditos! Esta edição tem ainda alguns momentos muito bons dos arquivos de Klaus Schulze, mas noutros casos nem por isso. Aparentemente, já não há coisa alguma inédita que valha a pena vir a público. A Jubilee tem também vários temas de estúdio recentes, alguns dos quais bastante bons. Neste mesmo ano surge «Dosburg Online», que mais uma vez mistura a música de Schulze com cânticos operáticos. O resultado, todavia, não é muito interessante, ao contrário do caso de Totentag.

Ao longo da sua carreira, Klaus Schulze fez algumas coisas péssimas. Mas as geniais que lhe saíram da imaginação são muitas e suficientes para lhe assegurar o respeito e a admiração de quem tem gosto pelo avant-garde. Para quem gosta de explorar novos domínios acústicos e estéticos, para quem não se rende à musiquinha para massajar a epiderme, as suas composições são companheiras fiéis de muitas horas de emoção estética partilhada com a solidão.

Discografia de Klaus Schulze como solista

Anos 70
1972 Irrlicht
1973 Cyborg
1974 Blackdance
1975 Picture Music
1975 Timewind
1976 Moondawn
1977 Body Love
1977 Mirage
1977 Body Love Vol. 2
1978 "X"
1979 Dune


Anos 80
1980 ...Live...
1980 Dig it
1981 Trancefer
1983 Audentity
1983 Dziekuje Poland
1984 Angst
1985 Inter*Face
1986 Dreams
1987 Babel
1988 En=Trance


Anos 90
1990 Miditerranean Pads
1990 The Dresden Performance
1991 Beyond Recall
1992 Royal Festival Hall Vol. 1
1992 Royal Festival Hall Vol. 2
1993 The Dome Event
1994 Le Moulin de Daudet
1994 Goes Classic
1994 Totentag
1994 Das Wagner Desaster
1995 In Blue
1996 Are You Sequenced?
1997 Dosburg Online


Séries limitadas
1993 Silver Edition (10 CD)
1995 Historic Edition (10 CD)
1997 Jubilee Edition (25 CD)
2000 Definitive Edition (50 CD)

 

TEXTO ORIGINAL ENCONTRADO em:  Crítica na rede

Klaus Schulze

Disco: TimeWind (1975)

Fragmento de “Bayreuth Return”

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