31.12.09

Crítica / Ellen Allien & Apparat Orchestra of Bubbles

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Não esperava a sobrepovoada Arca de Noé - que emparelha em duelos ou amistosas parcerias os recenseados da nação electrónica - encontrar lado a lado duas figuras impares da categórica e seminal cena berlinense, Ellen Allien e Apparat. Como se blindado contra todas as falhas que pudesse acusar o cumprimento da improbabilidade, o sistema agora aliado apresenta resposta para cada bala de cepticismo que se lhe aponte. Como podem ser alternadas ambições tão divergentes quantas as de Apparat – habitualmente dedicado à meticulosidade de uma aplicação cirúrgica de elementos - e Ellen Allien – recentemente elevada à condição de diva de um techno magno -? Através da democrática infusão de intervenções. Nunca chegando as marcas pessoais a anularem-se entre si.

Será realmente favorável mediar dois alcances opostos (quando Apparat favorece da curta duração do EP e a actual Allien armazenar em si uma grandeza que transborda a um longa duração)? Certamente que sim, com base num espírito united we stand, divided we fall - encontrando um meio termo ideal entre o atrofiamento do primeiro e a megalomania da segunda. Resultarão sobrepostas duas sensibilidades emergentes da mesma escola germânica pragmática e centrada na eficiência? Às mil maravilhas, atendendo a que exala a Berlim o comunal oxigénio que preenche os pulmões ao corpo híbrido que aqui adquire forma. Não adianta de facto falar na frieza germânica. Bastará a essa elação a escuta dos últimos lançamentos da B-Pitch Control que agora avança com Orchestra of Bubbles. Berlim é a nova Kingston.


Facilita a lógica à resolução da equação que torna primordial o título do disco: é borbulhante de facto o núcleo da encruzilhada que intersecta duas perspectivas cerebrais. Borbulhante como se resultante da efervescência que produz o encontro em Berlim (a que a autora de Thrills descobriu a outra metade após a queda do muro e que mudou a vida a Sascha “Apparat” Ring quando se mudou da província). Não tardou o destino a ditar comportamentos. Allien abundantemente artilhada com uma electrónica que rasga os espaços como feixes de luz. Apparat permanentemente pronto a remendar os estragos com um ping-pong exacto e robótico de ínfimos dispositivos sensoriais oleados a glitch e linhas minimalistas aplicadas como acupunctura. Não se conhecia uma química tão marcante desde que aquele parzinho amoroso tentava a melhor forma de escapar vivo ao naufrágio do barco que nem Deus era capaz de afundar. Faltavam contudo ao filme de James Cameron os tomates hermafroditas que pesam suspensos às bolhas multi-coloridadas de Bubbles. Não hajam dúvidas, a atitude frontal do disco é a de um statement.


De seguida, zapping diagonal por entre faixas. O primeiro e elucidativo single “Turbo Dreams” encontra Mallory Knox a publicitar os benefícios sexuais ao interior almofadado de um Toyota desportivo. Utilização simplificada de linhas entranháveis, com emulação de guitarra incisiva no lugar da embraiagem. “Retina” recupera o alerta ecológico às cordas imperiosas de “Hunter”, que abria Homogenic a Björk, e trata de utilizá-lo como combustível a um serpenteante combinado de texturas que se movem à velocidade da luz. Ritmo constante – “pum-pum-pum-pa-ta-pum-pum” - torna fumegante as narinas à locomotiva “Jet” – momento maior movido a ruído branco destilado e tremente arritmia de gorgulhos tornados berlindes. Depois, uma fase intermédia menos intensa, mas igualmente sólida. Glitch à beira de eutanásia no quase espiritual “Edison”. Bolhas aos milhares e estruturalmente dispersas no capsular e marchante “Bubbles”, em que Ellen Allien deixa em aberto a possibilidade de vir a intervir mais vezes vocalmente num próximo disco. Esperemos que sim.


E daí talvez tenha sido o admirável mundo novo que se descobre ao swing entre casais a infundir de diversidade Orchestra of Bubbles. Isto porque Holger Zilske, produtor dos últimos discos de Allien, entretanto veio a colaborar com Miss Kittin no narcisico I COM e, em jeito de escapadinha, a primeira não se acanhou em assumir a atracção por Apparat. Resulta a relação por força de um imparável magnetismo que forma bolhas entre os extremos de uma lâmpada de lava. Na verdade, arrisca-se a ser neste caso redutora qualquer aplicação que se tenha reservada para o techno. Temos caso sério em termos de disco de dança? Permito a que seja Simão Sabrosa a utilizar a sua resposta recorrente por mim: Sem dúvida. Hajam dúvidas e tratarão de dissolvê-las as bolhas verticalmente dispostas na bola de cristal do melhor disco nocturno em largos, largos meses.

Miguel Arsénio

TEXTO ORIGINAL ENCONTRADO em:  Bodyspace

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